Mulheres que sopram ventos
No senso comum e nas páginas dos jornais, a percepção sobre a presença dos imigrantes andinos na cidade de São Paulo encontra-se limitada a notícias vinculadas à situação de indocumentação, ao trabalho intensivo nas oficinas de costuras ou às situações fatais de extrema violência voltadas a imigrantes (como o caso do menino Brayan em 2013). Pouca atenção é dada à riqueza cultural da qual estas imigrantes são portadoras, o que também tem direcionado às políticas públicas a elaborarem ações voltadas aos imigrantes somente envolvendo organizações públicas de vigilância, como a polícia federal, as delegacias do trabalho e a polícia militar.
Os imigrantes e sua cultura em geral tem pouca visibilidade, e as mulheres imigrantes e seus saberes ficam mais invisíveis ainda. As imigrantes trazem seus valores, crenças e costumes, entre elas infelizmente também se encontra um machismo arraigado em quanto algumas práticas das quais as mulheres não podem fazer parte como é o caso dos Sikuris, que é um grupo de sopradores do Siku (também chamado liku, laka, zamponha). A este grupo de ventos se soma uma tríade: bumbo, caixa e prato de fanfarra. O grupo de sikuris é uma comparsa (grupo de pessoas e dança coletiva) que faz música para as festas indígenas, só homens podem tocar os sikus porque se argumenta que as mulheres ficam estéreis se tocarem esse instrumento, por via de regra os grupos são formados só por homens onde as mulheres só podem dançar, esta manifestação se encontra em paises andinos como Argentina, Bolivia, Chile, Equador e Perú.
Os povos andinos são conhecidos por suas cores vibrantes e musicalidade própria, marcada por diversos instrumentos de sopro, percussão e corda. A lakita é um dos estilos desenvolvidos por essas populações, em que uma única melodia vai sendo tecida com a entrada de diversos instrumentos. Primeiramente a entrada de um sopro, Ira, que é o guia, seguido de outro sopro, o Arca - esses são também os nomes dos respectivos instrumentos. A Arca e a Ira se complementam no som, sendo assim uma representação de sororidade através da música, e mostra a complementação nos olhares de cumplicidade de quem é arca junto a quem é Ira.
Esse estilo se desenvolveu nas zonas altiplánicas do norte do Chile, onde habitam comunidades originárias do país, plasmando em sua execução a cosmovisão desses povos. Os primeiros exponentes de Lakitas encontram-se na quebrada de Tarapacá (Chile) e as mais reconhecidas do país encontram-se no Norte Grande, na Região de Coquimbo, na Região Metropolitana e na Região de Valparaíso, no Chile.
Este estilo de instrumentação se desenvolve ao longo de toda a Cordilheira dos Andes, encontrando suas origens na música da zona altiplánica da Bolívia, Oruro, Cochabamba e a capital, La Paz; especialmente das Sikureadas, Sikus, música que também é composta principalmente por Zamponhas.
Nas cidades surgem as comparsas urbanas, como um novo conceito e estilo, abrindo espaços e contextos territoriais inovadores na prática musical, deixando para trás a execução exclusiva das festividades agropastoris ou religiosas; ampliando o cenário para abranger festas que reúnem toda a comunidade, como batizados, matrimônios e comemorações em geral, aproximando essa manifestação artística às sociedades ocidentalizadas, promovendo a cultura andina mediante a expressão musical que aos poucos começa a se definir como uma prática patrimonial aymara-chilena. (Ramírez, 2015; Fernandez, 2011)
As mulheres imigrantes andinas são sujeitos que carregam também uma cultura que no momento têm poucas possibilidades de se expressar plenamente. Desse modo, o grupo Lakitas Sinchi Warmis visa resgatar, estimular e visibilizar a manifestação desses mundos culturais por meio da formação e valorização de expressões de música de referência tradicional.
Formar um grupo de Lakitas de mulheres imigrantes é uma forma de visibilizar sua presença na cidade de São Paulo mostrando sua cultura. Promovendo a integração das mulheres imigrantes em torno a uma manifestação cultural que também serve para emancipar-se mostrando uma faceta pouco conhecida da migração feminina. Também se aponta a integrar às filhas brasileiras dos imigrantes na cidade de São Paulo que sofrem por não poder resgatar como uma ação afirmativa a identidade cultural de seus origens, criando uma ponte que permita o resgate da sua "outra" cultura.
Este projeto crê, então, que a desintegração, a baixa-estima e o estresse que os processos de trabalho pelos quais passam muitos dos imigrantes em São Paulo podem ser minimizados por meio do estímulo a práticas de referência de sua cultura, como a música, que podem contribuir para reelaborar os sentidos de pertencimento, identidade, comunidade e solidariedade desses imigrantes. Também procura reunir a valorização e divulgação da cultura andina à participação das mulheres imigrantes na vida cultural da cidade de São Paulo.
O grupo de inspira em iniciativas que já existem em outros lugares da América Latina, como é o caso das Lakitas Matriasaya (Valparaíso, Chile), a Comunidad Sagrada Coca (La Paz, Bolívia), as Kantutas Warmis Sikuris (Mendoza, Argentina), dentre outras, mas nenhuma dessas agrupações é composta só por mulheres imigrantes.
Espaços como este promovem a integração e a valorização das mulheres através da vivência em conjunto e da experimentação musical.
A importância de uma iniciativa desta em São Paulo é muito relevante, tanto pela valorização da cultura andina quanto pela participação e integração das mulheres imigrantes na vida da cidade. Deste modo, para além da situação real de mulheres que, por serem imigrantes, sofrem ainda mais com a insegurança, a falta de direitos, a xenofobia e o racismo; este projeto visa mostrar a riqueza dessa manifestação cultural, embebida numa cosmovisão que só tem a enriquecer esse mundo em que vivemos e compartilhamos espaços.
Em 2016 o projeto "Lakitas Sinchi Warmis: Mulheres que sopram ventos" e em 2017 o projeto "Jiwasa Lakitas Sinchi Warmis" foram selecionados para o Programa VAI (valorização de iniciativas culturais) da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo.